Análise dos perfis psicológicos de Antunes e Judite
Nome de guerra.
O título destaca Judite, ou melhor, o avesso. Daí não centralizarmos em Antunes
a nossa leitura. Por que razão Almada teria destacado logo no título a
personagem e o seu avesso? Que fantasmas, que mitos perpassavam o seu tempo e
escrita?
Ninguém é uma
ilha isolada, e crescer dói.
O Antunes não
conhecia todas as faces do Mundo —as suas seduções— , não sabia que saindo do
campo, Lisboa seria tudo menos aquilo que lhe era conhecido. Foi o seu destino
de perdição. O movimento metrópole, a música ritmada, campanhe, cigarros, as
luzes efémeras. Foi a noite que o afogou, e a incessante procura de um
vislumbre de realidade foi o que o fez viver, todos os dias, numa perfeita
ilusão. A vida em casa era demasiado longe e as cartas de Maria não chegavam em
bom momento, não quando ele já conhecia tão bem o que nelas vinha escrito mesmo
sem as ler, e conheci tão pouco da cidade fora da porta. O clube, todos os
homens que já familiarizados se encontravam com aquela entrada, com aquelas
pernas, com aqueles cabelos, e copos, e bebidas, e calor, e desejo, e loucura
constante. Ele era um novato, mas não demorou a habituar-se. Quem demoraria? A
primeira vez é a melhor. Mas logo soube, no entanto, que aquilo não era a ordem
nem a disposição natural das coisas, que traria consequências. Viver, vive-se
de dia, não de noite, e esta devia fazer parte da estadia, não um refúgio
final.
Mulheres. A
pura, intocável, inocente Maria. Ela era dele mas ele nunca foi dela. Ele soube
que nunca se entregaria completamente, não após conhecer Judite. A sua Judite.
Uma criatura com dois lados, com duas perspetivas que, se mal ouvidas, podiam
conduzir à desgraça de um homem. Uma menina, jovem mulher, bela, atraente,
cativante de tão misteriosa e convidativa a uma maior exploração. A Judite de
cabelos encaracolados, vestidos provocantes e língua destemida. Mas esta era
mesma Judite que se prostituía, que tinha o corpo jovem mas já usado, já gasto.
A mulher cujas mãos tremiam e os lábios pintados transmitiam apenas problemas,
não amor, cujas mentiras e dramas inimagináveis afastavam qualquer um que se
tentasse aproximar. A Judite que era a Eva,
que era a mulher do pecado que ele tanto tentava purificar.
Escusado será
dizer que o Antunes, ingénuo, perdido, viveu muito tempo, muitas horas, noites
e dias, ignorando a sua verdadeira essência, e só mais tarde jurou perceber,
por inteiro, cada letra do seu verdadeiro “nome de guerra”.
O seu nome de
luta, de dor, o seu nome de alguém que sofreu e não foi amparado. O nome de
quem está partido, estragado, e que já não há maneira de arranjar. O nome de
todas as noites que se teve de entregar para suportar a sua realidade de
fantasias. O nome que nasceu de todos os homens e mulheres que se aproveitaram
da sua mocidade e da sua beleza, que lhe roubaram cada gota de inocência que
possuía e que lhe corromperam o coração. Judite, era o seu nome de exército
solitário, de soldada que, sem armas, enfrentou um mundo inteiro. Judite, foi o
nome de guerra que encontrou a paz ignóbil de Antunes.
Judite. Todas as
possibilidades de realização sem culpas. Ele é sempre ambíguo, está sempre
dividido entre um sim e um não, entre uma tese e uma antítese; contradições
indicadas em quase todos os títulos dos capítulos que compõem a narrativa. Os seus
conflitos só se resolvem com a morte de Maria; ou melhor, o destino resolve o
seu conflito. Só então, Antunes pôde libertar-se de Judite, a mulher verdadeiramente
forte, mais forte que o Dr.Jorge, mais forte que os pais de Antunes, mais forte que
Maria. A sua realização com a Judite tinha sido uma compensação, uma desforra,
um contrabalanço.
“No conflito de Antunes um desejo inexplicado: destruir-lhe os seios.
Não cortá-los: destruí-los completamente e deixar-lhe os vestígios de terem
sido retirados.” Por quê?
Por que interditar em
Judite a possibilidade de amamentar, de compor plenamente a imagem de mãe ou de
Maria?
Quando se nasce pela
terceira vez há sempre restos das duas primeiras.
Judite. Por sob
o nome de guerra, pelo menos um nome de mãe, em cujo ventre Antunes se alimenta
para nascer para uma outra vida.
“–Não fales
assim dessa maneira não! Faz-me muito mal ouvir falar assim! Tu não vês como eu
estou aborrecidinha? Anda cá! Deu-lhe espaço na cama e fê-lo obedecer como um
petiz.
– Deita-te aqui
ao lado da tua Judite. Vamos falar muito, sim? Tu gostas de histórias? Mas não
vale fazer outra vez como ainda agora. Senão eu zango-me muito com o meu Luís.
O Antunes não podia
compreender que aquela voz fosse a mesma da refilona dos outros dias.
– Eu não sabia que
tu eras assim! Tens soninho? Estás cansadinho? Eu vou ali para o sofá e tu
ficas aqui à tua vontade, sim?
O Antunes fez que
não.
– Então ficas aqui
ao pé de mim, sim?
Ela ajeitou-se a seu
lado e abraçou-se com os braços mortos do Antunes.
– Anda, vá, faz ó-ó.
E embalava-o
como as mulheres fazem às crianças. E, muito baixinho, tão baixo que ela
própria mal se ouvia, cantava-lhe ao ouvido aquele segredo das mães para
adormecerem os filhos:
Tão-ba-la-lão
cabeça de cão
orelha de gato
não tem coração”.
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| Sem título; Almada negreiros |

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